TRANSPLANTE

O fígado é uma glândula constituída por milhões de células –, localizada no lado direito do abdômen, que produz substâncias essenciais para o equilíbrio do organismo.

Embora tenha uma capacidade extraordinária de recuperação, certas doenças provocam insuficiência hepática aguda ou crônica grave que podem levar ao óbito. Nesses casos, o único recurso terapêutico é a substituição do fígado doente por um fígado sadio retirado de um doador compatível com morte cerebral ou de um doador vivo que aceite doar parte de seu órgão para ser transplantado.

O primeiro transplante de fígado foi realizado em 1963, na cidade de Denver, nos Estados Unidos, pelo Dr. Thomas Starzl numa criança de três anos, que morreu durante o procedimento cirúrgico. Nesse mesmo ano, Dr. Starzl realizou outros dois transplantes de fígado, mas a sobrevida dos pacientes foi curta. Em 1967, ele repetiu esse tipo de cirurgia no primeiro paciente que sobreviveu por período mais longo e teve como causa mortis as metástases de um câncer anterior ao transplante.

Na América Latina, o primeiro transplante de fígado foi realizado com sucesso no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo pela equipe do Dr. Marcel Cerqueira César Machado, em 1968. Desde então, a técnica vem sendo desenvolvida e o número de transplantados aumenta a cada ano. Segundo dados da ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos), a taxa de sobrevida nesses casos, que era de 30% nos anos 1970, passou a 90% no final da década de 1980.

O que leva a um transplante hepático

A cirrose hepática – dano irreversível das células hepáticas – é a condição mais frequente que leva ao transplante hepático em adultos e crianças. A cirrose ocorre quando a anatomia normal do fígado é substituída por tecido de cicatrização, o que deteriora a função hepática.

As condições que levam à cirrose e a consequente necessidade de transplante de fígado incluem:

  • Cirrose por hepatite crônica por vírus B ou C.
  • Doenças que comprometem as vias biliares, incluindo a atresia(é uma doença rara caracterizada pela obstrução de vias biliares no período neonatal)
  • Doença hepática alcoólica.
  • Hepatite autoimune.
  • Doença hepática gordurosa não alcoólica.
  • Doenças metabólicas na infância.
  • Tumores hepáticos primários.
  • Hepatites fulminantes (drogas, vírus).

Avaliação preliminar

A avaliação inicial dos pacientes candidatos ao transplante deve responder às seguintes perguntas:

  • O paciente tem uma doença que possa ser tratada com transplante?
  • Existe outra opção terapêutica além do transplante?
  • O paciente apresenta outros problemas que podem impedir sua recuperação pós-transplante?
  • Os pacientes que serão transplantados querem e podem tomar as medicações após o transplante conforme orientação médica?
  • Os pacientes são psicologicamente aptos e têm o apoio de amigos e familiares para realizar o transplante?

Se a falência hepática é o resultado de abuso de álcool ou outras drogas, o paciente deverá ter um período de abstenção mínimo de seis meses para ser considerado um candidato ao transplante.

Lista de espera

O paciente candidato ao transplante de fígado é colocado em uma lista única de espera estadual para transplante, de acordo com a compatibilidade sanguínea (Sistema ABO).

Desde 2006, no Brasil, o critério de espera na lista respeita um índice baseado na gravidade da doença, conhecido como MELD (Model for End-Stage Liver Disease). Esse índice corresponde a um valor numérico que varia de 6 a 40, e demonstra quão urgente o paciente necessita do transplante. Os pacientes mais graves apresentam MELD mais elevados e serão priorizados.

Semelhante ao MELD, crianças e adolescentes candidatos ao transplante (menos de 18 anos) são listados respeitando o sistema PELD (Pediatric End-Stage Liver Disease).

Os casos urgentes (hepatite fulminante) têm prioridade absoluta na lista de espera do transplante. A sobrevida desses pacientes é muito curta e devem ser operados com urgência.

 

Transplante hepático intervivos e split

A necessidade de transplantes é infinitamente maior que o número de doadores com morte encefálica disponíveis. Desde 2004, entre 900 e 1 mil transplantes são feitos anualmente no Brasil. Cerca de 7 mil candidatos esperam por um transplante de fígado no Brasil, sendo 4 mil no Estado de São Paulo. Há cerca de 4 a 5 doadores para cada 1 milhão de habitantes no Brasil, contra 25 por milhão nos Estados Unidos, por exemplo.

Duas estratégias para minimizar o baixo número de doadores são o uso do split e do transplante hepático intervivos. No split , um órgão de doador com morte encefálica é dividido entre dois receptores, usualmente entre um adulto e uma criança. Desde a introdução do Sistema MELD em 2006, mais de 10 splits foram realizados por este grupo, com 100% de sobrevida dos pacientes após mais de 1 ano de transplante.

O Grupo de Transplante do Núcleo Avançado de Fígado do Sírio-Libanês é o grupo com maior experiência em transplante intervivos do Brasil, com mais de 350 transplantes dessa modalidade entre adultos e crianças. No transplante intervivos pediátrico, 1/3 do fígado do doador (usualmente pai ou mãe) é transplantado na criança.

O transplante intervivos para o candidato adulto é outra opção para se combater a escassez de órgãos. Nessa modalidade, os doadores se submetem a uma hepatectomia com retirada de até 70% do fígado. Nos próximos meses que se seguem à hepatectomia, o fígado nativo do doador cresce até 90% do volume original, sem deixar sequelas para a pessoa que faz a doação.

Em todo o mundo, os resultados para o intervivos de adulto têm melhorado e, atualmente, sobrevidas acima de 75% após o primeiro ano pós-transplante são esperadas.

 

O transplante

O transplante hepático leva em média de cinco a oito horas. O fígado doente é retirado por uma incisão no abdômen superior. Posteriormente, o fígado do doador é colocado na cavidade abdominal e os vasos sanguíneos (veias supra-hepáticas, veia porta e artéria hepática) são suturados às respectivas estruturas do receptor.

A última etapa do transplante é a reconstrução de via biliar, que pode ser feita com o ducto biliar do receptor ou com um segmento de intestino, como nos casos de transplante para atresia de vias biliares na criança.

Após a cirurgia, os pacientes passam um a dois dias em uma unidade de terapia intensiva se não houver qualquer complicação clínica ou cirúrgica pós-operatória. O tempo de internação hospitalar médio pós-transplante varia de uma a duas semanas.

 

Imunossupressão

A chave para entender o tratamento pós-transplante é o conceito de que o órgão transplantado é um corpo estranho. O sistema imune do receptor vai atacar o fígado transplantado num processo chamado “rejeição”. Por esta razão, todos os pacientes transplantados devem receber medicações que combatam a rejeição, as chamadas drogas imunossupressoras.

A despeito do uso dos imunossupressores, cerca de 50% dos pacientes transplantados apresentarão elevação das enzimas hepáticas no fim da primeira semana pós-transplante. Na maioria das vezes, isso corresponderá a um caso de rejeição celular aguda, que normalmente é facilmente tratada com corticosteroides.

Episódios de rejeição aguda, quando tratados adequadamente, não determinam diminuição da vida do enxerto de fígado. Muitos pacientes transplantados desde o início dos anos 80 estão vivos e com função hepática perfeita.

O uso de imunossupressores faz com que os pacientes estejam sujeitos a um maior risco de infecções oportunistas, causadas por vírus, fungos e bactérias. Portanto, os pacientes transplantados devem manter acompanhamento rigoroso, especialmente até o primeiro ano pós-operatório, para detecção precoce de eventuais complicações e intercorrências.

 

Dr. Fábio Luiz Waechter, do Centro de Cirurgia do Aparelho Digestivo CAD.RS participou do primeiro transplante Hepático no Hospital Moinhos de Vento de Porto Alegre